Presépio polar | Polárni zátísí | Polar still life | 1995



O lugar


O LUGAR


As estradas cruzam-se perto da vila de Kaukonen, na Lapónia finlandesa, 130 quilómetros a norte do círculo polar árctico. A estrada principal segue o curso do rio Ounasjoki até aqui, desde a cidade de Rovaniemi, e continua para norte até à cidade de Kittila. O cruzamento está cercado pela imensa floresta da taiga. É iluminado por candeeiros e por faróis de automóveis ocasionais. Está lua nova.

No ângulo sudeste do cruzamento há uma placa metálica azul-escura com a legenda "Kaukosentie", branca e luminescente, e uma seta apontando para a direita; no ângulo oposto, numa tabuleta semelhante com a legenda "Kolari", uma seta apontando para a esquerda.

Estão 20 graus negativos. As bermas estão soterradas por meio metro de neve amontoada. Atrás, estende-se um manto de neve, espesso e liso. O piso da estrada está coberto por uma camada de gelo, gravilha, sal e neve calcada, sulcada vezes sem conta pelas marcas paralelas dos pneus. No cruzamento, os sulcos desdobram-se, interceptam-se, descrevem arcos, desenham uma forma que se assemelha a uma estrela caleidoscópica.

Kaukonen significa "Distante”.

A 20 metros do cruzamento, no seu quadrante sudeste, entre as primeiras árvores da floresta, está a mesa.


A mesa


A MESA


A mesa está em Kaukonen, junto ao cruzamento. Tem as pernas enterradas 20 centímetros na neve. O tampo da mesa é um quasequadrado e os seus lados estão orientados para os pontos cardeais.

É uma velha mesa de madeira, de formas simples. Tem uma cor verde clara desmaiada. Esteve muito tempo fechada no armazém da família Latva e apresenta todas as marcas de desgaste e abandono. O tampo está marcado por arranhões, irregularidades, rugas, cortes, saliências, como um mapa sem legendas. No quadrante noroeste ficou uma mancha ruiva que lembra um sol moribundo.

A mesa é muito leve - um adulto pode erguê-la acima da cabeça, sem esforço. O tampo mede 90 x 80 x 2,5 centímetros. Os seus cantos são ligeiramente arredondados. O rebordo superior tem um rebaixo de 3 milímetros. As pernas são de secção quadrada, com a aresta exterior abaulada. São rectas e afuniladas para baixo. Têm 72 centímetros de altura. Nos seus furos encaixam as espigas das travessas que as travam. A madeira no interior das travessas não está pintada e tem uma superfície áspera, rugosa e escura.

Em cima da mesa está uma maleta aberta.


A máquina


A MALETA


Em cima da mesa está uma maleta aberta. É de madeira, com reforços de chapa nos cantos. Tem um revestimento vermelho-escuro que lembra pele de cobra.

A tampa está aberta para sudeste. Está fixa por gonzos ao bordo noroeste do corpo da maleta e mantém-se erguida graças a um encosto corrediço metálico. No interior da tampa há uma prancha rebatível que serve de receptáculo para discos.

O corpo da maleta acolhe um aparelho que é composto por um prato giratório, uma alavanca de velocidades e outra de travagem, uma caixa de ressonância e um braço reprodutor que suporta a câmara do diafragma. O prato giratório tem 25 centímetros de diâmetro. É revestido de veludo vermelho e o seu perímetro rematado por um aro de latão polido. Ao centro, sobressai um eixo metálico de topo arredondado. Junto ao prato destaca-se um ponteiro metálico com uma mira, que enquadra o número 78. À direita do número está inscrita a palavra FAST e à esquerda a palavra SLOW. Imediatamente contígua, a alavanca de travagem compõe-se pelo próprio travão de borracha, pela câmara da mola, o manípulo que liberta o prato e o disparador. No canto superior direito do painel do aparelho, abre-se uma cavidade rectangular que constitui a saída da caixa de ressonância. A caixa de ressonância percorre todo o interior do corpo da maleta, como um labirinto, e liga-se ao braço reprodutor no canto superior esquerdo. O braço é um tubo metálico retorcido que se eleva sobre o prato giratório. No extremo do braço está montada a câmara do diafragma, que tem a forma de uma campânula fechada. No bordo inferior da câmara situa-se a junta de transmissão, onde se fixa uma agulha de aço, oblíqua ao plano do disco.


O disco



O DISCO


O disco gira no prato do gramofone à velocidade de 78 rotações por minuto. É uma lâmina de vinil negro sulcada por uma espiral contínua, de fora para dentro. Tem um diâmetro de 30 centímetros e 2 milímetros de espessura. No centro há um orifício circular que encaixa no eixo do prato. Centrada no orifício está colada uma etiqueta redonda azul escura, com legendas brancas, entre as quais se destaca o número 33, inscrito num triângulo.

A agulha está pousada no disco em movimento e o braço oscila por causa de um ligeiro descentramento.


O som



O SOM


Fricção da agulha no fundo do sulco, para cima, para baixo, pressão, alívio, aço, vibração da membrana, caixa de ressonância - o som soa.

Melodia em arcos. Balanço de tom em tom. Sem grandes saltos: segundas, terceiras, algumas quartas e quintas. Agudo…

Doces sons pontuados e pianiníssimos costuram a linha de canto como uma teia. Tonalidade típica do final do século dezanove. A dominante como tensão maior. Forma: a (interlúdio) a'.

Ritmo: presto melancólico, causado pela rotação acelerada. Outros sons se juntam: o arranhar da agulha, o ronco de alguns motores e o ladrar ao longe. Soa ao canto de uma sereia andróide.

Em cima do disco, a girar, algo arde.


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O QUE ARDE


Em cima do disco, junto à etiqueta, gira uma pequena taça brilhante de forma cilíndrica. É de plástico vermelho, translúcido.

A pequena taça, contém cera branca e um pavio que arde. O calor produziu na cera uma cavidade agora cheia de cera derretida transparente. A chama dá às paredes da taça um brilho vermelho vivo que escurece gradualmente em direcção à base. A força centrífuga provoca a oscilação da cera líquida. O vento e o movimento de rotação alteram constantemente o sentido, a forma, o volume e a altura da chama. Por vezes, esta salta acima da boca da taça, noutras quase se extingue.

A taça gira à velocidade de 78 rotações por minuto. A sua luz projecta nos objectos em redor sombras fracas e inquietas.

Alguns centímetros acima da chama que gira, colada à prancha rebatível, na tampa do gramofone, está a fotografia.


A fotografia



A FOTOGRAFIA


A fotografia está colada ao receptáculo para discos, que se inclina sobre o prato. É de formato redondo, colorida e está amarelecida pelo tempo. Nela vê-se um rapaz de onze anos que tem nas mãos uma longa vara. Os extremos da vara ultrapassam os limites da fotografia. O rapaz está algures numa cidade, entre outras pessoas. Tem cabelos amarelo-dourados, fortes e despenteados, os olhos azul-cinza e o rosto branco.

Está a olhar para a câmara, tem uma expressão grave, assustada, como se o fotógrafo o tivesse surpreendido nu. Traz vestido um longo capote escuro de bandas acentuadas, entre as quais se pode vêr uma camisola de lã vermelha e o colarinho duma blusa azul-escura.

0 rapaz segura nas mãos uma vara de madeira que pode ser uma lança ou uma vassoura, uma bandeira ou uma cruz, uma vara que pode servir de arma, de apoio durante a caminhada, ou como símbolo de poder. Ou então, simplesmente uma vara que se leva nas mãos.

A vara divide a imagem em dois semi-círculos desiguais. Vem de baixo, desde a margem da fotografia e torna a encontrar a margem no seu ponto mais alto; a mão direita do rapaz segura-a por cima do peito e a esquerda, junto ao rosto. A vara faz com o plano do chão um ângulo de cerca de 66 graus.

A fotografia é iluminada pela pequena chama da vela a girar, pelos candeeiros da estrada e pelos faróis de carros ocasionais.